28/08/2012

« É uma casa tão grande a ausência »

*
 
 
 
Se morrer, sobrevive-me com tanta força pura
que despertes a fúria do desanimado e do frio,
de sul a sul ergue os teus olhos indeléveis
que, de sol a sol ,soe a tua boca de guitarra.
 
Não quero que vacilem o teu riso, nem os teus passos,
não quero que morra a minha herança de alegria,
não chames ao meu peito, estou ausente.
Vive na minha ausência como numa casa.
 
É uma casa tão grande, a ausência,
que passarás nela através  das paredes
e no ar suspenderás os quadros.
 
É uma casa tão transparente, a ausência,
que eu, sem vida, te verei viver
e se sofreres, meu amor, voltarei a morrer.
 
Pablo Neruda   in  “ Cien  Sonetos de Amor” - Soneto XCIV.
       foto de fernanda s.m.


26/06/2012

quando, minha luminosa

*



quando, minha luminosa, deitado penso em ti
e a teu lado bebo as sombras que te pousam na pele,
apenas a harmonia se respira
da tua testa pousada no meu peito, das tuas mãos presas às minhas.
a noite avança e eu a medo toco o teu cabelo.
o silêncio tem a paz de um olival e dos nossos passeios no alentejo,
o meu amor é como a lua a aflorar-te a face adormecida,
o meu amor é esta e todas as noites, um sobressalto de
estrelas benfazejas,
uma espuma serena em que repouses, uma corrente em que nades de alegria,
uma vide a entrelaçar-te, ó minha luminosa, uma concha de ternura que te guarde.
uma espécie de música que vá vibrando em ti.


Vasco Graça Moura - in "currente calamo" (Poesia 2001/2005)
foto de fernanda s.m. - "Oliveiras- Alentejo"

17/06/2012

Um grego poeta

*

     *Lírio-aranha (Hymenocallis festalis). - foto de A. Mota




O SENTIDO DA SIMPLICIDADE


Escondo-me atrás de coisas simples,
para que me encontres.
Se não me encontrares, encontrarás as coisas,
tocarás o que minha mão já tocou,
os traços juntar-se-ão de nossas mãos,
uma na outra.


A lua de agosto brilha na cozinha
como pote estanhado (pela razão já dita),
ilumina a casa vazia e o silêncio ajoelhado,
este silêncio sempre ajoelhado.


Cada palavra é a partida
para um encontro - muita vez anulado –
e só é verdadeira quando, para esse encontro,
ela insiste, a palavra.





Yannis Ritsos




Tradução de  Eugénio de Andrade










15/06/2012

O centro do mundo

*




o centro do mundo

da minha janela quando nasce o sol vejo o centro do mundo

o musgo sorvendo a curta humidade sobrevivente das pedras

passageiras do tempo os lagartos escondendo-se nas fendas

escuras um mundo secreto e fechado viscoso como a noite



de pedras polidas pela patina do nosso tempo  se cobre a luz

do sol que enche a minha varanda e a janela aberta
*****
foto e texto de Orlando Cardoso

02/06/2012

Da ternura

*


No fundo da ternura há um som de lágrimas -
água clara onde o sol do entardecer
odoroso se deteve;
vem das lembranças, cristais de sal,
chispas na pele esfolada pelos jogos
infantis e as perdas
de que a vida nos preencheu os dias.
Companheira amável do desencanto,
outra forma afinal de dizer mágoa.



Soledade Santos in  « Sob os teus pés a terra » - Artefacto

foto de autor desconhecido

26/05/2012

Una furtiva lacrima

*



UNA FURTIVA LACRIMA


Desliza


suave


furtiva


uma lágrima


abre em ti
a flor
oculta
e breve


Amélia Pais

22/05/2012

Logo mais

*



 A chuva anoitece o dia mais brevemente do que nossas almas desejam.
  O sol, que não encontrou a força para rasgar a cortina cinzenta da atmosfera, deixando, assim, nossos olhos mergulhados no limbo das cogitações mais íntimas, oferece-se, agora, num esplendor de cores várias, ao cair no mar onde vai, finalmente, repousar da luta diária.
  E deixa, no horizonte, um risco de azul-cobalto argênteo, lá longe, ao cair da tarde, qual promessa de regresso, logo mais, para outro duelo com a borrasca.
  Este raio, com que se despede, prende nossos olhos, tão sofregamente, que continuamos a vê-lo depois de já ter partido.
  Logo mais, amanhã, será o futuro ?

Leiria, 22 de Maio, 2012

texto e foto de fernanda s.m.

16/05/2012

Ontem, hoje. E amanhã ?

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( texto antigo, mas de hoje )

Perdoem a ironia, mas já não aguento mais ! ! !
foto: fernanda s.m. - marachão
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     « Cai, sobre a cidade do Liz, o silêncio e a calma de um dia quente de setembro: é este, sempre, momento íntimo e forte que convida, instiga mesmo, à meditação sobre os valores e a pureza dos elementos cósmicos, olhando o sombreado que o poderoso astro solar sacode mansamente sobre os pobres humanos, antes que se aproxime a estrela da madrugada.
Mas em lugar nenhum do mundo essa magia é tão pura como nesta cidade! Porque leves Zéfiros inspiradores transportam no ar, não já as brisas do Liz, (sopram de outros quadrantes) mas sim o aroma inspirador das pocilgas e/ou das "etars".
É como se o campo viesse dar um beijo de boas noites, oloroso e romântico, à cidade!
E nesta terra de amores reais cantados, e tantos outros amores sussurrados, os leirienses, contagiados e enfeitiçados por estes aromáticos fins de tarde, sonham, inebriados, com Isabel. A amantíssima esposa e rainha do rei do “verde pinho”; a que conseguia transformar o encardido pão em rosas aromáticas. Pudesse ela sentir estes odores porcinos da sua cidade que embriagam todos os fins de tarde - os quentes, os ventosos, os húmidos, os frios... Pudesse a Santa Isabel, a das rosas, fazer outra vez o milagre, mas agora já não com o pão ... !



Ai, como eu gosto dos fins de tarde na minha cidade, onde chega o aroma forte e acre..., das estevas, quando o vento se engana e sopra de leste! »




fernanda s.m. - setembro de 2007 - in «http://matebarco.multiply.com/journal/item/47/QUANDO_O_VENTO_VEM_DO_NORTE

06/05/2012

Mãe

*


Mãe
Abril é outro tempo,
luz aberta
lembranças de repouso,
parece.

Nalgumas tardes, nesgas de sol,
dá vontade de chamar
mãe, anda cá, vem sossego desta luz,
igualinha às tuas mãos quando eu chegava da escola.

O tempo é o que é
e a luz não se entrega,
é assim.

Mãe, deixa lá,
só queria um poema como o das tuas mãos.

25/04/2012

tarde cinzenta em abril

*





da minha aldeia vê-se o mar e a orla branca namorando a duna
que submerge na bruma pendurada nos pinheiros que ecoam
o som cavo das águas que adivinho revoltas como a chuva caída

é hora de estender o olhar e encontrar para lá da janela embaciada
a ternura doce e suave deste cravo onde o meu peito se aconchega

orlando cardoso
25.04.12