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OS DOIS NATAIS
"O Menino Jesus, deitado, olhava em volta e não compreendia. Entrevia
difusamente o rosto fatigado da mãe, o vulto de S. José mais atrás, os olhos
grandes da vaca e do burro fitando-o. Chegavam-lhe de forma obscura o murmúrio
das vozes e o cheiro dos animais; tinha frio. Via também, em qualquer sítio,
como num sonho, rostos disformes, punhos, gente gritando, a enorme sombra de
uma cruz, e não compreendia.
A dor, quando as mãos trémulas da mãe cortaram o cordão umbilical, o sabor do
sangue dela na boca, as primeiras lágrimas, a primeira carícia, o corpo de
Nossa Senhora, branco e transido, era tudo tão estranho! Um deus, sobre húmidas
palhas, coberto de trapos, aprendia naquele instante coisas graves e
essenciais: o frio, a dor, o mistério dos sentidos, o medo indistinto de algo
que ainda não podia saber.
O deus transformara-se num frágil e confuso ser de sangue e de músculos, tocado
por um dom extraordinário e novo, o da vida. Os pulmões do menino enchiam-se de
áspero ar, os olhos de incompreensíveis imagens do mundo vasto e profundo do
estábulo, e o sangue corria violentamente nas suas veias, líquido e quente,
ruborizando-lhe as faces. E quando os seus pequenos dedos afloraram pela
primeira vez o rosto próximo da mãe, o deus aprendeu subitamente, com uma
alegria desconhecida, qualquer coisa densa e maravilhosa inacessível aos
deuses.
Por um singular milagre repetido, um homem igual aos outros homens jazia
imensamente numa tosca manjedoura, no fim de uma longa viagem interior. Um
homem condenado a viver uma tragédia absurda, como a de todos os homens, um
homem solitário e ferido de brusca e humana vida, tocado pela glória extrema da
transformação e da morte. Os seus olhos olhavam pela primeira vez tudo,
incapazes talvez de compreender o íntimo desígnio divino que o movia. Em algum
improvável lugar, no entanto, os deuses conheciam agora algo único e absoluto
sobre os homens e sobre si mesmos.
Pelo segredo essencial da infância, da «balya», por onde passa o caminho dos
homens para o reino dos céus, passava também, naquele dia distante, o caminho
dos deuses para a terra dos homens. Um deus nascera entre os homens, mas um
homem como todos os outros nascera igualmente entre os deuses. E enquanto no
estábulo de Belém a mãe dava o peito ao menino deus, noutro estábulo, noutro sítio,
Adão menino estendia os braços e chegava sem pecado aos ramos altos da árvore
proibida".
Manuel António Pina
foto de
fernanda s. m.