10/12/2011

Por amor de um verso

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POR AMOR DE UM VERSO

Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, – em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas.


 Rainer Maria Rilke, in “ Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, (versão portuguesa, pp 19-20).

foto de fernanda s.m. - o "Gago Coutinho" , Olhos d'Água, engolido pelo mar em 2010.

4 comentários:

Aníbal Duarte Raposo disse...

Belo. Subscrevo cada palavra e cada ideia. Fazer poesia é isso.
Beijo

Adriana Riess Karnal disse...

Fernanda, a fotografia e o poema sem compoem muito bem. Rilke é mágico

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

É delicioso vir aqui...A gente sai leve, feliz e mais rico de poesia...

Um abraço, Fernanda.

fernanda sal m. disse...

Meus amigos, tenho andado longe de "aqui" e venho agora enviar-vos um abraço pela visita e palavras gentis, pois a "estrela-da-madrugada" vive de quem a ama e visita.
Uma boa época natalícia.
Abraços.